PADRE JOSÉ ALVES, CM: «50 ANOS DE MISSÃO»
Conselho Nacional Portugal
Março 20, 2021
A Família Vicentina, Notícias Vicentinas
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O Padre José Alves celebrou no ano de 2020, no mês de setembro, 50 anos de ordenação sacerdotal. Desafiámo-lo a responder a algumas questões.
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O Pe. José Alves, é natural de Esperança, Póvoa do Lanhoso. Recorda-se da motivação que esteve na origem do chamamento para entrar no seminário?
Nasci em terras do Alto Minho, freguesia da Esperança, concelho da Póvoa de Lanhoso, numa família humilde, mas trabalhadora. A ideia de ir para o Seminário e de ser padre é algo que nasce de maneira impercetível e, depois, encontra terreno apropriado e vai amadurecendo. Mas tudo começou com a minha proximidade da Igreja paroquial e com o começar a “ajudar à Missa”, como se dizia naquele tempo, com apenas oito anos de idade, mal conseguindo transportar o pesado missal do lado da epistola para o lado do Evangelho, conforme as normas litúrgicas em vigor. E das minhas respostas em latim, no diálogo com o celebran49 te, gostava de ter hoje uma gravação! E foi por aqui que nasceu a ideia de ir para o Seminário….
Porquê o Seminário da Congregação da Missão? Em aldeias próximas, havia dois seminaristas que frequentavam os Seminários da Congregação: um já no Seminário Maior (que viria a ser o falecido P. Américo) e outro no Seminário Menor. Foi através deles que tive contacto com a Congregação da Missão. No Seminário, vivia-se intensamente a inquietação missionária alimentada pelos Círculos Missionários que nos proporcionavam várias revistas, entre elas o Missionário Católico (hoje, Boa Nova), Além-Mar e Mensageiro de S. Vicente de Paulo, Mission et Charité, Parole et Mission, Vivante Afrique… bem como pela visita de missionários, vindos de Moçambique, que com as suas narrativas coloridas alimentavam o nosso imaginário de adolescentes.
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Pode descrever-nos o seu percurso de formação?
Eu vivi, e por outro lado, sou fruto de mundo em mudança. A 2ª Guerra mundial tinha terminado há 10-15 anos. A Europa, em profunda transformação graças ao Plano Marshall, criado para a sua reconstrução. Por isso, começa uma forte imigração clandestina, em busca de trabalho, para a Europa central, severamente reprimida em Portugal por razões políticas. Desenvolveram-se os movimentos independentistas em África e na Ásia; agudizou-se a guerra fria entre os dois grandes blocos em que se havia dividido o mundo do pós-guerra; começa a ganhar particular importância um terceiro bloco chamado dos países não alinhados; aconteceu o Concílio Vaticano II e o maio de 68; o homem chegou, pela primeira vez à lua; as grandes manifestações pela dignidade dos negros nos EUA, liderados por um grande homem, Luther King, barbaramente assassinado. Todos estes acontecimentos não foram efémeros, deixaram rastos, fizeram escola…
Surgem grandes pensadores: exegetas, liturgistas, teólogos, sociólogos, moralistas, que trouxeram, à formação eclesiástica, novos horizontes. Notava-se na formação, sobretudo nos últimos anos, uma marca acentuadamente bíblica, de intervenção social e missionária.
Procuram-se novas formas de presença pastoral através de movimentos e de experiências pastorais: os padres operários, o movimento neocatecumenal, os cursos de cristandade, experiências missionárias de jovens durante as férias… Tudo isto constitui os ingredientes que ajudaram a construir a visão da Igreja e do mundo que formou e caracterizou a minha geração.
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A sua geração fica marcada pelo envio para missão de Moçambique. Como vê, 50 anos depois, esse envio na história da PPCM?
Terminado o curso teológico no ISET (Instituto Superior de Teologia) ofereci-me para a missão em Moçambique. Não foi uma iniciativa isolada, mas situa-se dentro de um movimento que animava os estudantes de teologia da nosso Instituto: Seminaristas dos Olivais para Nampula, Franciscanos para Inhambane, Vicentinos para Lourenço Marques… A nossa presença em Moçambique era significativa: dois Seminários Menores (Lourenço Marques e Quelimane) e um Seminário Maior de carácter interdiocesano e várias Missões nas duas dioceses do Sul de Moçambique. Foi um grande esforço da Província Portuguesa para responder aos pedidos da Hierarquia da Igreja em Moçambique. E isto foi levado tanto a sério que enviou para Moçambique alguns dos seus melhores recursos e “descurando” um pouco, na minha ótica, a sua presença em Portugal. Lá estive 12 anos, divididos aritmeticamente em dois períodos completamente distintos: 6 anos, no fim da administração colonial, e 6 anos sob administração do regime marxista leninista que marcou o início da história de Moçambique independente. Se nos primeiros seis anos era tudo igual a qualquer casa de formação, os outros seis vieram carregados de novidades surpreendentes, extraordinariamente enriquecedores, pois me obrigaram a conviver com o diferente e tão diferente que foi preciso aprender tudo de novo: o ensino na escola pública, como quem caminhava permanentemente no “fio da navalha”, a prática pastoral, necessitada de se adaptar às restrições de ação e de movimentos impostos pelo regime e pela escassez de recursos humanos causada pela partida de muitos missionários. Sobre os escombros de uma estrutura eclesial anterior nasce uma nova igreja sem recursos materiais, porque foi tudo confiscado pelo regime, sem missionários, sem poder, unicamente apoiada nos pequenos grupos de cristãos que resistiram ao rolo compressor do regime marxista leninista….
Cinquenta anos depois, hoje, parece-me que abarcámos grandes extensões territoriais, permitindo que os confrades ficassem isolados. Em muitos casos, sozinhos e como que perdidos em imensas áreas geográficas. Sei que não foi a ânsia de abarcar, mas sim o desejo de dar respostas às solicitações que nos eram feitas… mas vários sacerdotes sucumbiram ao peso da solidão.
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Voltemos o olhar para Portugal. Como é que um padre vicentino consegue passar de um “estilo de missão” para uma cultura de cristandade, regressando de Moçambique para Portugal?
A pastoral está marcada por uma “visão”, um “estilo”, que leva a uma “praxis” inspirada na pessoa de Jesus Cristo. O presbítero, o missionário é isso mesmo: tornar presente o Cristo Pastor. A pastoral e toda a ação evangelizadora, mais do que pôr rótulos, caracteriza-se por atitudes… Mais do que por espaços geográficos, a pastoral de “cristandade” ou “missionária” depende, sobretudo, das pessoas, da sua formação e da sua capacidade de interiorizar o Evangelho. Conheci pessoas, em Moçambique, a praticar uma pastoral de “cristandade” e conheço pastores, em Portugal a praticar uma pastoral “missionária” … A minha inquietude missionária desenvolveu-se e amadureceu, sobretudo, nos últimos anos de formação em contactos com a Igreja de Lisboa. Obviamente que o contexto, hoje, é diferente. Andou-se muito caminho; mas ainda há muito para andar: a assimilação dos documentos conciliares, da Exortação apostólica “Evangelii Nuntiandi” e da Exortação apostólica “Evangelii Gaudium” ainda está a ser feita e nem sempre de forma linear e ascensional. Há avanços e recuos…
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Olhando há 50 anos, quais as principais surpresas que teve ao longo do exercício do seu ministério por que não esperava?
Primeiro, uma grande diversidade de ministérios ou serviços. Mas a minha maior surpresa foi a escolha para o primeiro mandato de Visitador, em 2004. Ocupado com a construção do complexo paroquial de S. Tomás de Aquino a que o Visitador da minha nomeação para pároco tinha dado prioridade para recuperarmos os espaços que estavam ao serviço da paróquia, não estava focado noutras atividades. Mas a situação da Província, na altura, revestia alguma complexidade e, depois de “não” e “sim” inconclusivos dados por diferentes candidatos, fui convocado pelo Superior Geral, na qualidade de assistente da Província, para participar na Assembleia Geral de 2004. Em novembro seguinte, fui eleito visitador.
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Quais as principais diferenças entre os vários mandatos enquanto provincial?
Desde já a diferença de “estado de alma”. No princípio do primeiro mandato, em 2004, havia alguma agitação interna que perturbava as relações fraternas e naturalmente também as de trabalho. Uma expressão, muitas vezes por mim utilizada nas minhas comunicações, era a urgência em “refazer o tecido relacional”. Isto felizmente já não aconteceu nos outros mandatos. Depois, em 2004, a Província tinha 11 casas e 53 confrades, no último, cerca de 40 confrades e 8 casas com a marca inevitável de 10 anos mais velhos.
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Quais os principais desafios que a Província Portuguesa vai ter de superar nos próximos tempos?
O primeiro desafio é o envelhecimento acentuado. Face a ele é importante apostar numa pastoral vocacional de “contacto”, de acompanhamento, não tanto para repor estatísticas antigas, mas para responder aos desafios da Igreja e da Sociedade A pessoa e a missão de Jesus continuam a fascinar e a encantar as pessoas de hoje. “Deitai as redes”… É questão de detetar, de perscrutar os sinais e de escutar o Mestre… Outro desafio é formação, formação… a dois níveis: – Estudos académicos para adquirir ferramentas adequadas; – Adquirir e trabalhar uma mentalidade que sinta necessidade desta formação e coloque o confrade numa busca constante, investigação nunca acabada, não tanto para justificar ideias preconcebidas ou alimentar snobismos ou vaidades, mas para responder às exigências do anúncio do Evangelho e às necessidades do homem de hoje.
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Quais os “novos” terrenos de missão que permitem a Província permanecer fiel ao carisma fundacional?
O “novo terreno” é o velho terreno de sempre e que está na origem da Congregação: é o anúncio de Jesus Cristo, é o anúncio do Evangelho. O que fez crescer, dignificou e deu voz à Igreja na América Latina foram a Comunidades Eclesiais de Base.
A sua extinção fez entrar a Igreja Católica num acentuado declínio, tanto em número como em influência junto do povo, com um campo aberto para o crescimento das Comunidades Evangélicas. As Comunidades Familiares podem-se associar, de certo modo, às Comunidades Eclesiais de Base. Elas dão ao povo cristão aquilo que começa por dignificar a pessoa: a consciência de pertença e de relação, ao contrário das grandes assembleias anónimas.
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Como vê a Congregação da Missão, a nível global?
A participação em eventos internacionais da Congregação da Missão deu-me uma visão alargada da mesma Congregação a nível global, é certo. Distingo três realidades bem diferentes:
Na Ásia a Congregação está em franco crescimento e que poderíamos chamar harmonioso, equilibrado, em formação e em número: Filipinas – Indonésia, Índia e Vietname. Todas estas Províncias têm campo de missão no exterior: Japão, China, Coreia, Ilhas Fiji. Províncias jovens com bom número de candidatos. Com boa formação e com inquietação pastoral.
Na américa Latina nota-se alguma recuperação. Há vocações; há casa de formação a funcionar; tem havido ordenações. Destacam-se o Brasil, a Colômbia, o México e a América Central.
Na África, é motivo de preocupação a instabilidade criada pelo fundamentalismo islâmico; alguns problemas de regionalismo ou tribalismo. Apesar de haver muitos candidatos, o número de ordenações não lhe é proporcional. As províncias ou regiões são todas muito novas e estão a fazer o seu caminho e o futuro apresenta-se com larga abertura de horizontes.
A Europa, ou melhor, o chamado mundo de cultura ocidental em que se inclui os EUA estão numa situação deveras clamorosa: envelhecimento acelerado e a falta de vocações põem em causa obras emblemáticas dessas províncias, mas até a própria presença da Congregação nessas zonas.
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Por que continua hoje em dia a fazer sentido um jovem ser padre vicentino?
A minha resposta começa com uma pergunta: o Evangelho de Jesus Cristo tem sentido? Valoriza e dignifica o homem? Dá-lhe sentido à vida. Ajuda-o a ultrapassar os seus limites? Acreditamos que sim! Por isso, necessita de ser anunciado e proposto. Daí a necessidade do mensageiro. Questão que o apóstolo Paulo já punha de forma acutilante: “Mas como poderão chamar por aquele em quem ainda não acreditam? Como podem acreditar se não ouviram falar dele? E como hão de ouvir se não há quem lhes anuncie a Boa Nova? E como há de alguém pregar-lhe, se não for enviado?” (R,X,14ss). S. Vicente de Paulo é um dos homens da Igreja que melhor incarnou o projeto evangélico de Jesus e traduziu a inquietação de Paulo: “…condenam-se e morrem de fome” Anúncio da Salvação em Jesus Cristo (evangelização) e atuar conforme Jesus Cristo (Caridade).
Ser missionário de Jesus à maneira de Vicente de Paulo é dos modelos mais empolgantes e fascinantes da história da Igreja. Acredito que conserva toda a sua capacidade de sedução das origens. Tudo está na maneira de o propor.