Sexta-feira 13 de Dezembro de 2024
Breves

Preliminares

A partir do primeiro ano da era consecutiva ao Concílio Ecuménico Vaticano II, a Sociedade de S. Vicente de Paulo quis analisar-se a si mesma através de um exame leal da sua própria vida.

É seu desejo permanecer fiel ao sentido de um regulamento e de uma tradição que são conjuntamente veneráveis e muito vivos e ao mesmo tempo explicitar a sua adaptação ao mundo moderno.

Um “Regulamento” é necessário conciso: exprime em resumo a vida de cada dia, mas deve também prever todos os casos e modalidades de funcionamento. Até agora «o Regulamento» era acompanhado, a seguir a cada artigo imutavelmente conservado, de um «comentário» universal, mas revisto com frequência, e era esclarecido por largos extractos de cartas e de circulares das diversas épocas da Sociedade. Agora, pareceu mais claro fazer preceder a nova «formulação» do regulamento, simplificada e harmonizada, de uma «declaração» em que ressalte o que é e quer ser a Sociedade de S. Vicente de Paulo no mundo movediço em que vivemos.

É no espírito desta “declaração” que o regulamento deve ser compreendido e interpretado em todos os lugares e em qualquer época: as palavras poderão mudar, mas o espírito permanece.

As suas modalidades de aplicação, porém, devem necessariamente adaptar-se aos países e às circunstâncias. Essas modalidades são expressas por «comentários nacionais» propostos pelos Conselhos Superiores e aprovados pela Mesa do Conselho Geral da Sociedade. Como esta Declaração é consagrada a definir de novo, em linguagem actual, a vocação e o espírito da Sociedade de S. Vicente de Paulo, tem que abranger as modalidades de acção. Destinam-se estas a «comentários ou directórios nacionais». A acção concreta é, com efeito, o trabalho quotidiano de todos os membros da Sociedade junto dos «pobres» a quem assistem. É um trabalho a que os vicentinos se voltam de todo o coração. Muda com o tempo e os lugares, mas tem sempre o mesmo significado porque é a mesma espiritualidade que o anima.

 

 I – EVOCAÇÃO DAS FONTES

 
Regresso às origens da Sociedade de S. Vicente de Paulo:
Intenções iniciais, intenções de sempre 
 

Em 1833, Frederico Ozanam, que estudava em Paris e tinha 20 anos, e alguns amigos igualmente jovens tiveram, com Bailly, a inspiração de se unirem para o serviço dos «pobres» da maneira mais humilde e discreta, no enquadramento da sua vida profissional e familiar de leigos.

Sentiam em primeiro lugar a necessidade de «dar testemunho» da sua fé cristã mais por actos do que por palavras. Consideravam seus irmãos os infelizes, quem quer que fossem e qualquer que fosse a espécie do seu sofrimento. Viam neles Cristo sofredor. Amavam-os ao mesmo tempo como homens e como filhos de Deus; e reconheciam neles não só a sua dignidade de homens confrontados com o mundo e as suas misérias, mas também a dignidade correspondente àqueles a quem é dado, em primeiro lugar, o Reino de Deus.

Logo que entraram em contacto pessoal com os «pobres» viram que a caridade é inseparável das exigências da Justiça. E, tanto quanto puderam, reivindicaram justiça para os «pobres». Mas se nem sempre é possível a justiça neste mundo, quiseram ao menos fazer o que deles, simples estudantes, dependia: dar, pessoalmente, o que o mais pobre pode dar, a partilha do seu tempo, dos seus módicos recursos, da sua presença, do seu diálogo, com o vivo desejo de fazer tudo o que fosse possível para levar um alívio eficaz. Partindo deste diálogo, aperceberam-se de que, para compreender os pobres, é preciso em primeiro lugar ser pobre com eles.

Desta maneira, o que viria a ser a Sociedade de S. Vicente de Paulo não podia senão chamá-los a um aprofundamento da sua vida espiritual.

Viver desse contacto pessoal com os que sofrem, vivê-lo unidos em comum e com aquele espírito, é a própria essência, o carácter original da Sociedade de S. Vicente de Paulo. Para a época e da parte de leigos, Ozanam e os seus amigos exprimiam assim uma antecipação profética, haurida nas próprias fontes da Palavra de Deus e da Tradição cristã.

 
 Fundamento das intenções da Sociedade de S. Vicente de
Paulo na mensagem evangélica
 

Basta reler o Evangelho para encontrar a inspiração que animou a Sociedade de S. Vicente de Paulo a partir da sua fundação:

O Reino de Deus já chegou: estão nele os pobres, os pequeninos, que a ele foram chamados em primeiro lugar – O Reino de Deus é a lei do amor, o coração da mensagem evangélica. O testamento de Cristo é o amor fraterno vivido conjuntamente através do amor de Deus, e começa pelo serviço do «próximo». – A caridade é universal e recíproca: os pobres servem os pobres e dão esmola e o seu testemunho é o mais alto – O serviço dos pobres é o serviço do próprio Cristo, esses pobres com os quais seremos sempre confrontados e que serviremos ao mesmo tempo com amor e com justiça. – Na vida de pobreza (isto é, de partilha) está a verdadeira fecundidade da nossa vida de homens e de cristãos.

Os textos apostólicos desenvolvem esta mensagem: nós, e os pobres em primeiro lugar, somos filhos adoptivos e herdeiros de Deus, este estado introduz-nos na esperança pela lei universal do amor e esta atitude abre caminho ao diálogo e à reciprocidade da partilha entre irmãos, na caridade e na justiça inseparavelmente.

A história da cristandade ilustra o cuidado da dignidade e do serviço dos «pobres»: compreende-se, por isso, na obra universitária e literária de Ozanam, o lugar ocupado pela mensagem de pobreza vivida com os pobres por S. Francisco de Assis, e o exemplo de incansável dedicação e de eficácia de S. Vicente de Paulo, erigido padroeiro da Sociedade que acabava de surgir.

 

 II – A «VOCAÇÃO VICENTINA»,
CORAÇÃO DA UNIDADE DA SOCIEDADE
DE S. VICENTE DE PAULO

A palavra «vocação», empregada diversas vezes pelo Papa Paulo VI ao dirigir-se à Sociedade de S. Vicente de Paulo, exprime claramente a significação profunda da unidade tão concretamente sentida por todos os seus membros.

 
Uma vocação, um apelo:
o serviço directo dos «pobres»
 

Uma «vocação, no sentido lato, é um «apelo» da consciência esclarecida pela graça do Espírito Santo. Quem quer que um dia tenha desejado ser «vicentino» traduziu em acto o que é uma consequência da nossa fé cristã: não é somente o apelo absolutamente universal de Cristo ao espírito da caridade, pois é ainda uma nota particular desse apelo: o último desejo de participar «pessoal e directamente» no «serviço dos pobres» por um «contacto de homem para homem», pelo «dom pessoal do próprio coração com a sua amizade» – e de o fazer numa comunidade fraternal de leigos animados da mesma vocação».

Há uma infinidade de matizes e de diversidades para exprimir esta vocação: traduzi-la, concretamente em actos, «medi-la», adaptá-la ao mundo variado e mutável, é toda a vida do vicentino, toda a vida da Sociedade de S. Vicente de Paulo.

Na origem desta, na época de Ozanam, ela exprimiu-se pela «visita aos pobres nos seus domicílios», que se considerava o protótipo das actividades vicentinas. Numa linguagem mais moderna, diríamos que não nos contentamos com a simples distribuição de «esmolas» mas devemos procurar o diálogo pessoal com os que sofrem (seja qual for o sofrimento), sem o menor sinal de paternalismo, numa atitude de confiança mútua, de respeito pelas pessoas e pelo lugar sagrado que é o seu lar, de partilha da amizade e de reciprocidade de serviços, de todas as delicadezas do amor.

Toda a actividade caritativa que seja vivificada por tal atitude pode ser uma obra da Sociedade de S. Vicente de Paulo.

É certo que esta vocação pode viver-se isoladamente, mas não é menos certo que ela só pode ser plenamente sentida e apoiada numa certa comunidade, onde se encontra a alegria de participar fraternalmente no mesmo ideal, além de um respeito mais rigoroso pela dignidade dos pobres, anonimamente ajudados pelo grupo, do qual pode ser mandatário tanto o mais pobre como o mais rico.

 
 Uma motivação, uma finalidade
 

A fonte da vocação vicentina é ao mesmo tempo humana e divina: é a angústia causada pelo espectáculo do sofrimento do outro ser humano, a espontânea reacção de simpatia e até de revolta perante as injustiças de que são vítimas os nossos irmãos em humanidade. Mas é também a atitude do cristão impregnado da palavra de Deus, que vive da esperança do mistério pascal da Ressurreição, portador dessa mensagem de esperança que contém toda a fraternidade humana pelos que sofrem e suportam a sua cruz pela fé nesse mistério da presença de Cristo nos pobres e nos atribulados.

O objectivo é igualmente duplo: o humano socorro dos infelizes, tanto quanto possível a salvação dos seus destinos de homens; e pelos canais interiores da graça e do testemunho, a salvação comum pela participação no Reino de Deus.

 
III – O «COMPROMISSO» VICENTINO: 
A REGRA «VICENTINA»

Toda a vocação leva a um «compromisso», isto é, a uma adesão absolutamente livre a um certo género de vida definido por uma «Regra», escrita ou não. Para quem sentiu a vocação para o serviço pessoal dos pobres prestado em comum com os outros, mas sem perder o firme sentimento do seu estado de leigo envolvido nas questões do mundo, entrar na Sociedade de S. Vicente de Paulo é o «compromisso» que dá corpo a essa vocação. Uma vocação que não leva a um compromisso é uma vocação sem efeito, uma vocação perdida.

O compromisso vicentino não tem nada de um voto compulsivo, pois não há nada mais livre nem mais reversível. Mas é um acto sério e quem o pratica aprende a conhecer-se, a verificar se o encontro com os «pobres» e com os vicentinos que se entregam ao serviço deles é ou não enriquecedor.

Em geral, o que responde à vocação vicentina e a vive lealmente por esse compromisso numa «Conferência de S. Vicente de Paulo», mesmo que um dia se afaste, ficará mudado pelo que viveu, dedicado ao serviço dos homens que sofrem e preocupado em humanizar as relações que no mundo actual estão ameaçadas de anonimato.

Todo o «compromisso» comporta a adopção de uma «Regra». A «Regra», aqui é o antigo «Regulamento» mas rejuvenescido, simplificado; é a expressão densa e concisa do espírito que a anima. A «Regra» não é nada sem esse espírito, mas o próprio espírito tem necessidade da Regra para garantir a unidade no mesmo espírito.

 

IV – A «SOCIEDADE DE S. VICENTE DE PAULO»: CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS

Uma associação profundamente fraternal

A partir das suas primeiras reuniões, os fundadores da Sociedade de S. Vicente de Paulo encontraram tanto conforto nesta experiência de vida comum que se sentiram verdadeiramente «irmãos» e instituíram o uso de se darem à alegria de se reunirem uma vez por semana. Também no nosso tempo é essencial um mínimo de «regularidade das reuniões» e de assiduidade.

A afeição mútua, a igualdade fraternal dentro de uma «Conferência» como entre todas as Conferências do mundo, fazem da Sociedade de S. Vicente de Paulo uma verdadeira «família» humana e espiritual, aberta a todos os que aspiram à vocação que lhe é própria.

Uma família de leigos cristãos

É uma associação de leigos (embora não exclua os seminaristas ou sacerdotes que desejam participar na vida vicentina) que vivem no mundo, com as suas funçõas e responsabilidades, recrutados nos meios mais diversos, jovens ou idosos, sem a menor distinção quanto à riqueza ou carência de meios, de qualquer condição social, étnica ou nacional: basta-lhes que se entendam para o mesmo fim, que partilhem a sua experiência e que tenham a mesma preocupação de servir os pobres. São homens ou mulheres, celibatários, casados ou viúvos, ou mesmo casais, que confundem a unidade do seu lar na participação na Sociedade de S. Vicente de Paulo.

As características jurídicas deste estatuto de sociedade de leigos foram reconhecidas no passado pelos Pontífices romanos como, ultimamente, pelos decretos e constituições conciliares do Vaticano II: a Sociedade de S. Vicente de Paulo estabelece as suas próprias regras e não as recebe do Magistério, elege os seus responsáveis com toda a independência e administra livremente os seus fundos.

Mas trata-se de leigos cristãos: a estrutura da Sociedade harmoniza-se com a sua unidade na fé cristã: baptizados, filhos adoptivos de Deus pela redenção por Cristo, membros do seu Corpo Místico que é a Igreja universal, está aí o sentido profundo da sua fraternidade, do seu amor comum aos pobres, da sua dedicação à Hierarquia da Igreja. Embora sejam, na qualidade de membros de uma sociedade de leigos, independentes da administração dos eclesiásticos, é pela liberdade do seu respeito à Hierarquia que lhe são mais profundamente deferentes do que se fossem adstritos juridicamente. Neste clima de liberdade, é tradicional dar conta da actividade vicentina ao Papa, ao bispo, ao pároco…, estar pronto a associar a acção da Sociedade a todas as organizações eclesiais que o desejem. Nunca a intimidade de tais relações se desmentiu, pois, mais do que na «lei» é no «espírito» que ela está inscrita. A Igreja Romana, na sua autoridade suprema, sentiu-o de tal modo, que não cessou de renovar a sua confiança na Sociedade de S. Vicente de Paulo, até ao ponto de delegar no Conselho Geral desta Sociedade o direito de fazer participar os membros das Conferências por ele agregadas nas graças de numerosas «indulgências» (no sentido cada vez mais puro que se lhes dá).

 
Uma Sociedade de espírito jovem
 

Fundada por jovens e para jovens, o «espírito de juventude» é uma tendência original e permanente da Sociedade de S. Vicente de Paulo. Essa tendência, inscrita no regulamento da Sociedade logo no seu início, nele permanecerá. Mas é também neste ponto que há mais necessidade de estar vigilante, visto que a juventude física se vai perdendo em cada um e se temos que a renovar pelo recrutamento de novos membros, cabe-nos ao mesmo tempo conservar a juventude de espírito.

O espírito de juventude é o dinamismo, o entusiasmo, a projecção no futuro. É a generosa aceitação dos riscos, é a imaginação criadora, isto é, acima de tudo, a adaptabilidade, propriedade essencial da juventude, muito mais importante que a adaptação, que se torna esclerose para quem já não consegue readaptar-se.

No sentido deste espírito de juventude, a Sociedade de S. Vicente de Paulo pode chamar-se um «movimento de caridade e de apostolado». Pode a juventude da idade não garantir sempre as qualidades profundas do espírito de juventude, mas sem dúvida predispõe para que se tenham essas qualidades. Dar amplo lugar aos jovens, compreendê-los, dialogar com uma paciência recíproca, confiar-lhes cargos, ser jovem com eles, se corresponde a uma necessidade de recrutamento, é também uma exigência de fidelidade às origens da tradição vicentina de Ozanam.

 
Uma sociedade universal

 

 

Sabe-se como a primeira «Conferência de caridade» porque estava a crescer desmedidamente, se dividiu em duas «Conferências de S. Vicente de Paulo» e depois proliferou em todo o mundo, quer disseminada pelos confrades que iam residir para outras localidades, quer por geração espontânea. A dor da separação foi compensada com esta alegria e este mistério: em qualquer lugar em que um confrade encontre uma Conferência, vê nela uma e a mesma família, apesar da extrema diversidade dos respectivos trabalhos e das particularidades nacionais.

Entre os cinco continentes, entre mais de uma centena de nações e as centenas de milhares de vicentinos e vicentinas, sente-se a unidade na fidelidade à mesma vocação, na adopção da mesma «Regra», no mesmo Conselho Geral Internacional do qual as Conferências» recebem a sua agregação, de harmonia com o regulamento comum, na permuta de informações entre o Conselho Geral, os Conselhos Superiores e outros e as próprias Conferências.

A partir de 1947, a possibilidade técnica de efectuar regularmente em Paris, lugar da fundação primitiva, reuniões plenárias do Conselho Geral (presidentes dos Conselhos Superiores e Secção Permanente) reforçou e modernizou esta unidade: a colegialidade é a regra e o presidente exprime as decisões como representante da colegialidade do Conselho.

 
Unidade na diversidade das adaptações às condições variáveis do mundo
 

A universalidade implica ao mesmo tempo a unidade e a diversidade: as formas de pobreza evoluem como o mundo e as suas diversas partes. Em todos os lugares e a todos os momentos é preciso imaginar uma «prospectiva de miséria» e das possibilidades de a mitigar. A unidade fundamental da vocação vicentina está aberta a todas as disparidades de acções readaptadas constantemente para o mesmo fim. A Sociedade permanece «una» num «pluralismo de acções».

 

 
Uma família «católica» aberta ao ecumenismo dentro da Igreja universal

 

Esta unidade na universalidade estende-se naturalmente à abertura ecuménica da era pós-conciliar. É um sinal providencial que já na primeira metade do século XIX se tenha inscrito na regra apenas a palavra «cristão» para definir a comunidade essencial dos vicentinos. No entanto, a Sociedade de S. Vicente de Paulo ia desenvolver-se durante mais de um século com uma «fisionomia» estritamente «católica». Pela sua extensão e carácter universais, pela sua autonomia e o seu carácter leigo, pela sua pré-adaptação a cooperar com todas as espécies de acção caritativa dos cristãos e de todos os homens de boa vontade, pela própria natureza da «caridade contra a qual não há lei», por um apostolado de testemunho e não de propaganda a Sociedade de S. Vicente de Paulo esta predisposta para as experiências ecuménicas. Considera-as ao mesmo tempo com prudência e esperança. Ora, pela unidade, os cristãos têm sede desta unidade e sentem-se chamados a contribuir para ela.

 

V – CARIDADE, POBREZA E APOSTOLADO

Aspiração a uma vida «mais evangélica»
 
 Dentro da «Sociedade de S. Vicente de Paulo», cujas características constitutivas foram evocadas, os membros desta Sociedade aspiram, tanto quanto permite a sua fraqueza, a responder à sua vocação por uma vida «caritativa e apostólica, quer dizer, a testemunhar a sua fé pelo amor pessoal aos que sofrem».

À luz dos ensinamentos do Concílio Vaticano II, pela reflexão sobre o regresso às fontes evangélicas, bem como às origens da sua fundação, em presença deste mundo de hoje, do qual assumem o encargo como leigos nele comprometidos, os vicentinos voltam a definir a sua missão e as suas aspirações. Vamos resumi-las.

Pobreza da Sociedade de S. Vicente de Paulo
 

Como grupo, ela é tradicionalmente pobre, o que significa que não entesoura, que dá em cada dia o que recebe dos seus membros e dos seus benfeitores, pouco ou muito, segundo as circunstâncias. As despesas de funcionamento são reduzidas ao mínimo compatível com a eficácia; ela não acumula capitais mobiliários ou imobiliários a investir, nem a sua administração vai além do estritamente necessário para evitar a desordem.

 

 
O espírito de pobreza dos membros da Sociedade de S. Vicente de Paulo

 

 

A palavra «pobre» tem um significado complexo e ambíguo. Pode dizer-se que a pobreza é uma condição económica, mas é também uma disposição interior. As traduções da Bíblia empregam-na em ambos os sentidos, que se compenetram mutuamente. Aqui trata-se principalmente de fazer uma resumida análise da virtude da pobreza, que está a par da virtude da caridade.

Quem não for pobre, de algum modo não pode entrar em diálogo com os pobres. Senti-lo é uma das graças mais profundas que pode receber o «visitador dos pobres». Cada um segundo a sua vocação própria, dá testemunho da primeira das Bem-Aventuranças vivendo o espírito de pobreza, inseparável de qualquer carência voluntária ou acidentalmente sentida ou aceite de maneira concreta, existencial.

O espírito de pobreza é, primeiro que tudo, um espírito de partilha: a vontade de não reter riquezas sem o bom uso delas. Salvo casos excepcionais, o «voto de pobreza» (no sentido dos religiosos) mal se coaduna com as responsabilidades de um leigo, mas é também uma forma de pobreza sentir as nossas riquezas, os nossos talentos, incondicionalmente afectos ao serviço do bem comum e em primeiro lugar ao serviço do nosso próximo, os «pobres».

O «espírito de partilha» exprime-se ao menos na vontade de partilhar completamente alguma coisa: um dá o seu tempo e pratica a virtude da «disponibilidade», outro dá o seu dinheiro, este dá o seu saber, aquela gasta a sua saúde, outro ainda oferece o conforto moral que irradia da sua pessoa… Todo o cristão, mesmo o mais indigente, pode, sem heroísmo excepcional, participar em tais partilhas, em tais permutas a «dar-se a si mesmo», no sentido que lhe é revelado pelas graças pessoais que recebe. A «partilha» não é o mesmo que a dádiva ou a esmola, visto não existir sem reciprocidade e permuta.

 
 Modéstia e eficiência
 

Esta caridade vai muito além da «esmola», pois implica um estado constante de humildade simples e de modéstia. O contacto directo com os infelizes afasta de toda a publicidade e demonstra ao que o exerce que não é mais do que um «instrumento inútil», somente valorizado pela graça de Deus. No entanto é preciso ir, tanto quanto possível, às raízes da miséria. Muitas vezes nada se conseguirá sem dispor de meios poderosos. Não particularizam os vicentinos as grandes obras de beneficência ou de actividade social. A sua missão na luta contra a miséria é mais discreta. Mas se as circunstâncias os levam a ocupar-se delas, não as afastam, e procuram impregná-las de alguma coisa do contacto humano em que foram formados pelo exercício da caridade vicentina.

Quanto à publicidade, situa-se entre o dever de informação («não se acende uma lâmpada para se pôr debaixo do alqueire») e o dever de anonimato, e de sincera modéstia.

 
Preocupação de justiça e dever quanto ao «desenvolvimento solidário» da humanidade
 

Se é necessário ser modesto, importa igualmente ser lúcido. Ora o excesso de modéstia tem o risco de ocultar a extensão das responsabilidades de uma sociedade que providencialmente se tornou universal através de tantos países do mundo: a constituição conciliar «Gaudium et Spes», as encíclicas «Mater et Magistra» e «Populorum Progressio» são elementos fundamentais de lucidez para todas as vocações de caridade, até e sobretudo as que se pretendem mais discretas.

Assim, a Sociedade de S., Vicente de Paulo, no seu conjunto, e cada um dos seus membros, sentem-se mais claramente atingidos pelas novas dimensões da solidariedade planetária dos homens. Os entraves à justiça social, as misérias da fome, os sofrimentos de subdesenvolvimento, dizem respeito a todos os vicentinos, mesmo quando ocorram a grandes distâncias. Não podem esquivar-se: a imaginação criadora deve conduzi-los a conferir as virtudes do diálogo directo e pessoal a todos estes problemas mundiais que não são reservados exclusivamente à política internacional.

Cresceram as dimensões do que é hoje «o nosso próximo»: não podemos deixar de lhes corresponder. O Terceiro Mundo, pelos seus estudantes, os seus trabalhadores, os seus emigrantes, está presente nas comunidades políticas tecnicamente avançadas. A participação em obras de cooperação pode ser considerada uma expressão da vocação vicentina. Nas jovens comunidades cristãs dos > «países do Terceiro Mundo» o ideal vicentino induz os mais pobres a socorrer, eficazmente, outros pobres e a viver as dimensões do amor cristão. Está tudo por construir nesta fase do mundo moderno.

 
Extensão e características da presença no mundo da vocação vicentina
 

Para ter encontros eficazes com os que sofrem das misérias mais diversas, não basta a meditação, é preciso também passar por uma aprendizagem que proporcione o conhecimento «técnico» dos problemas sociais e da psicologia dos que sofrem de qualquer frustração, a par da experiência do contacto directo com os que sofrem.

A Sociedade de S. Vicente de Paulo tem a missão de fazer progredir esta «técnica» e, como todas as partes da Igreja, ela permanece disponível, no seu conjunto e através de cada um dos seus membros, para estar presente onde quer que possa servir.

Qualquer unidade social pode ser domínio de recrutamento e de actividade de uma Conferência de S. Vicente de Paulo: escola, universidade, fábrica, hospital ou sanatório, até prisão, etc…, mas tradicionalmente a Conferência está presente em primeiro lugar na «paróquia», a mais comum das cristandades. Os vicentinos sabem que não têm o monopólio da caridade, que não são mais do que uma modesta família cristã com uma experiência caritativa humilde e fecunda e que estão prontos a fazê-la partilhar por todos e para todos. A sua disponibilidade deve exprimir-se em primeiro lugar pelo serviço comum da pastoral de conjunto da paróquia!

Estão igualmente disponíveis para o serviço das grandes organizações como as «Caritas» nacionais e a internacional, dotadas de meios poderosos, às quais podem dar a sua experiência do contacto individual.

Esta abertura ao diálogo, esta disponibilidade individual, deve exprimir-se também nas suas famílias, nas suas profissões, na sua vida cívica, porque ela impregna toda a vida pessoal dos vicentinos.

 
Aspiração à vida evangélica, testemunho de espiritualidade e de apostolado
 

A vocação vicentina não consiste somente em servir os pobres mas também em prestar este serviço em comum dentro de um grupo, a «Conferência de S. Vicente de Paulo». É aí e a partir daí que, na maior parte das vezes com o auxílio de um conselheiro eclesiástico, é explicitada, meditada, aprofundada toda esta parte da espiritualidade, concernente às relações entre a pobreza e a caridade, da qual viveu S. Vicente de Paulo e legada por ele aos seus filhos em religião. Diz-se actualmente que há no serviço do próximo, e sobretudo dos mais «pobres», uma espécie de «sacramento» que é a aproximação de Cristo sofredor presente nos pobres. Está aí o centro da espiritualidade vicentina: ela experimenta ao mesmo tempo o que pode significar a presença de Cristo na Eucaristia e a sua presença nos pobres. Esta comporta em si valor de salvação, isto é, de acesso ao Reino dos Céus. A espiritualidade vicentina sente como um escândalo que se seja indiferente à segunda quando se tem tanta piedade pela primeira.

Cada um aproveita dessa espiritualidade segundo a graça que recebe e o acolhimento interior que lhe reserva. A esperança de todo o vicentino, se ele corresponde à graça, está na realização do desejo expresso numa das orações tradicionais do fim das sessões «… a fim de que, tendo dado com a melhor vontade aos pobres o que possuem, se dêem si mesmos»; linguagem antiga que exprime a mesma aspiração à vida das Bem-Aventuranças, isto é, à vida conforme o Evangelho.

Será um ideal excessivo e abusivamente constrangedor? Nada disso. A regra vicentina não obriga em consciência, e isto pode tranquilizar os mais escrupulosos. A experiência secular mostra que a aspiração a este ideal de vida evangélica se encontra na maior parte das vezes em cristãos muito simples, sem qualquer sentimento de heroicidade: pobres camponeses de um país tropical, estudantes ocupados com os seus estudos, operários vergados ao peso da fadiga, «responsáveis» esmagados de preocupações.

É de entre os «cristãos médios» que o sopro do espírito chama a maioria dos membros da Sociedade de S. Vicente de Paulo e os incita, conforme as suas possibilidades e, por vezes, para além destas, ao serviço dos mais infelizes. Este ideal de solidariedade no acesso ao Reino de Deus é o que há de mais antigo e de mais novo como testemunho apostólico.